A CARTA
Em meio às frequentes apropriações versadas pela arte contemporânea, nos deparamos nesta exposição com o objeto Carta, tão caro e raro em feitio manual. Seu destaque, neste caso, se deve ao fato de ter sido encontrada por acaso, em meio aos descartes de uma vizinha de Patriciane quando ela tinha 12 anos. Michele costuma encenar situações típicas da linguagem fotográfica em pintura, como uma forma de realizar o que parece não ser possível pelo dispositivo fotográfico. Em “Diz a carta, muda a estampa” (2012), o reflexo da imagem de Patriciane na janela durante a ação de leitura da carta não condiz com sua aparência em primeiro plano e em destaque. Noutro momento, Patriciane aparece pela linguagem fotográfica com a carta em mãos, percorrendo a área externa de uma antiga construção, usando o mesmo vestido azul de bolinhas brancas com o qual aparece na pintura de Michele.
A leitura da carta escrita à mão por um jovem que deixa o Rio Grande do Sul para trabalhar em São Paulo desperta a imaginação das duas artistas. Tanto sua visualidade quanto seu conteúdo são determinantes para o encaminhamento de suas ações. Notemos que se trata de apenas um dos direcionamentos possíveis. A carta saudosa de um filho para sua mãe, no ano de 1939, contando particularidades cotidianas, além de revelações de desejos para o futuro profissional, nos leva à experiência com um tempo e lugares não vividos, o que a torna uma apropriação peculiar. Daquilo que possa ser sentido pelo contato com o objeto Carta, são concebidas situações visuais pautadas sobre a narrativa. Tais situações se apresentam como ocorrências, das quais algumas são inventadas, outras transpostas para o espaço-tempo presente. Imagens envolvendo o contexto e simbolizações em torno da Carta são colocadas numa relação de enfrentamento, assim como ocorre entre as linguagens da pintura e da fotografia.
Possivelmente a forma como lidamos com as distâncias geográficas e temporais seja a questão fundamental que permeia a exposição. Ao nos afastarmos das coisas com as quais estamos acostumados, experimentamos outras formas de nos relacionar com o entorno e com as coisas das quais nos afastamos. A perspectiva condicionada pelo movimento é o aspecto abordado na Carta e que nos conduz a ação das duas artistas.Como seria viver o contexto daquele momento? Como teria sido a experiência de leitura da Carta? Como seria o desfecho dessa história? Dentre as diversas possibilidades para um final, se encontram as vivências rumadas pela arte contemporânea, em estreita relação com o real.
Renata Santini
Doutoranda em História e Crítica de Arte
Universidade Federal do Rio de Janeiro