Vestindo as Fantasias do Cotidiano:
Apropriação e Manipulação na Pintura Contemporânea¹
Michele Martins Nunes²
Resumo: O presente texto trata-se de uma reflexão acerca da série de pinturas Fantasias do Cotidiano, realizada em 2005. A partir da análise destas obras, o texto aborda possibilidades de apropriação, bem como procedimentos de manipulação de imagens pré-existentes e diferentes elementos na pintura contemporânea. É abordada também a questão da inserção da palavra na obra, que é outro procedimento utilizado nos trabalhos mencionados.
Palavras-chave: pintura contemporânea, apropriação, manipulação, identidade.
Wearing the Fantasies of Everyday:
Appropriation and Manipulation in Contemporary Painting​
Abstract: The following text is a reflection over the series of paintings named Fantasias do Cotidiano (which means, in English, “Fantasies of Everyday”), made in 2005. From the analysis of these works, the text approaches possibilities of image appropriation, as well as manipulation procedures of pre-existent images and different elements in contemporary painting. The question of the use of words in art works, which is another procedure used in the series mentioned, is also approached.
Keywords: contemporary painting, appropriation, manipulation, identity.
A manipulação de referências históricas e culturais como meio de produção artística é uma das práticas recorrentes na arte contemporânea. Marcel Duchamp foi um dos precursores desta prática, quando, por exemplo, pôs bigodes em uma reprodução da Mona Lisa. Porém, foi na Pop Art que essa prática passou a chamar mais a atenção e, com o passar dos anos, vem se fortalecendo. Tal fortalecimento é possível de se observar também em tendências artísticas como a Transvanguarda Italiana e o Neoexpressionismo Alemão.
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¹ O presente artigo é uma versão resumida da monografia “A Ilusão de Ser”, desenvolvida no segundo semestre do ano 2005, apresentada como Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Artes Visuais à UERGS, sob orientação do Prof. Dr. Marco de Araujo.
² Artista Visual, mestranda em Poéticas Visuais pelo PPGART/UFSM, graduada em Artes Visuais pela UERGS/FUNDARTE.,
No ano de 2005, realizei, como Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Artes Visuais da UERGS/FUNDARTE, a série de pinturas Fantasias do Cotidiano, composta por seis telas pintadas a óleo. O presente texto consiste em uma análise dessa pesquisa, cuja proposta foi a de trabalhar com possibilidades de combinação de imagens, referências do passado e diferentes elementos da pintura contemporânea, além da inserção da palavra na obra pictórica. Trata-se, pois, de um resumo de sua parte textual e reflexiva.
Inicialmente, farei uma breve apresentação de meus primeiros experimentos com apropriação de imagens em pintura dentro do curso de graduação e de meus referenciais artísticos, para, posteriormente, analisar e refletir sobre a série de pinturas mencionada.
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Apropriação, segundo o dicionário Houaiss, significa “tornar próprio, adequado, apoderando-se de coisa alheia abandonada ou sem que o dono o consinta” (HOUAISS, 2001, p.263). E manipulação, conforme o mesmo dicionário, “significa tocar, transportar com as mãos, utilizar”. Este dicionário se refere à manipulação também em relação aos espetáculos de mágica, definindo como “a série de movimentos das mãos, com os quais o prestidigitador simula o aparecimento ou desaparecimento de objetos, ou sua substituição por outros. Uma manobra oculta ou suspeita que visa a falsificação da realidade” (Idem, p.1838).
A partir do ano 2003, dei início à minha pesquisa em pintura reproduzindo e manipulando imagens pré-existentes na mídia (jornal, televisão, internet, revistas, livros, entre outros). Primeiramente, meu trabalho surgiu de um interesse pessoal sobre a quantidade de imagens e textos de tragédias e problemas sociais que vemos o tempo todo em jornais, revistas, televisão ou internet, contrapondo com todo o colorido da publicidade. A pergunta que me fiz foi: “E se eu juntasse uma imagem social a uma frase comercial?”. A partir deste questionamento surgiu a série de trabalhos (RE)Vendo-nos, que antecede minha pesquisa de conclusão de curso, e que consiste em ampliações de imagens de cunho social, nas quais foram agregadas frases que podem ter sido slogan de um produto comercial, nome de música, manchete de jornal.
Faz parte dessa série a obra Lanche Feliz [Fig. 1] A imagem reproduzida nesse trabalho tem origem em uma reportagem da revista Veja, sobre a Fome. A esta imagem agreguei os dizeres Lanche Feliz, com letras e cores que fazem referência à logomarca do Mc’Donalds. Ao utilizar imagens pré-existentes na série, agia contra a intenção da proposta original de quando elas foram criadas. A letra do MC’Donalds não servia mais para anunciar (vender) um hambúrguer. Subvertia a idéia comercial da frase publicitária ao uni-la à uma imagem de contexto social, criando uma espécie de anti-publicidade.
Apropriação de imagens: antecedentes e afinidades artísticas
Fig.1 Lanche Feliz, óleo s/ tela, 80 x 100 cm, 2003.
Lembro-me de quando vi pela primeira vez a colagem O que torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? [Fig. 2], feita em 1956, por Richard Hamilton. Nesta obra, o artista se apropriou de imagens preexistentes da mídia e manipulou-as de modo a formar uma nova imagem. Pensei nesta “reciclagem” de imagens como uma brincadeira, como um jogo de quebra-cabeça. Só que neste jogo é o artista quem escolhe as peças. Garimpando nos meios visuais aos quais tem acesso, seleciona as partes para depois montar um todo. Segundo David McCarthy, Hamilton.
tirou as imagens preexistentes de seus contextos originais e as transpôs, sem mudá-las, para uma composição nova, cuidadosamente organizada. Os anúncios retêm conseqüentemente algo de sua identidade original – eles apregoam mercadorias – e agora funcionam também como acessórios comerciais num verossímil interior doméstico do pós-guerra. (McCARTHY, 2002, p.8)
Fig.2 Richard Hamilton, O que torna os lares
de hoje tão diferentes, tão atraentes?,
Colagem, 26x25cm, 1956. Kunsthalle Tübingen, Coleção Prof. Dr. Georg Zunde
O título questionador da obra de Hamilton, relacionado à imagem carregada de significados, torna a resposta à pergunta do título óbvia: o consumo. Esta obviedade, que num primeiro momento atraiu-me para a pop, posteriormente me desencantou. Sem deixar de lado o uso de imagens preexistentes, passei a me preocupar em tornar meu trabalho menos óbvio e com mais sutileza na proposta. Queria que minhas imagens possuíssem ambigüidade.
Foi dessa vontade que originou-se a série Fantasias do Cotidiano, em que interpreto através da pintura um espaço doméstico partindo de um referencial fotográfico. Incorporo nestes espaços imagens de nus femininos retirados do universo das obras pictóricas da história da arte [fig.5 e fig.7]. Estas figuras aparecem nestes trabalhos desempenhando minhas atividades cotidianas, como se fossem registros de momentos do meu dia a dia.
Em minhas obras, portanto, realizo experimentos quanto à visualidade mesclando componentes de diferentes origens. Conforme Lourdes Cirlot,
Em su mirada hacia etapas y estilos anteriores, los artistas postmodernos han combinado, em sus realizaciones, lenguages del pasado com otros que estuvieron vivos em corrientes del siglo XX. Se há impuesto um eclecticismo que há afectado todos los terrenos, incluído el del diseño. Cada vez resulta más complejo, y a la vez mas arriesgado, intentar uma classificación por modalidades dentro de esta gran etapa que corresponde a la postmodernidad. (CIRLOT, 1990, p.15)
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As combinações de linguagens de que fala Lourds Cirlot, podem ocorrer através da mescla de diferentes procedimentos, linguagens e materiais, da reutilização de elementos do passado e através de citações de imagens já existentes.
Podemos observar tais procedimentos nas pinturas do artista Julian Schnabel, que no início da década de 80 produzia obras que apresentam diferentes códigos de representação, tais como: arte renascentista, objetos reais, desenho figurativo e pintura abstrata. Um exemplo de seu trabalho é a obra Exile, de 1980 [Fig.3]. Segundo Charles Harrisson e Paul Wood, a “visão do artista inundado por um manancial iconográfico e técnico preexistente, a partir do qual é preciso conquistar uma nova coerência, é característica de uma certa consciência “pós-moderna”” (WOOD, 1998, p.233).
Fig.3 Julian Schnabel, Exile, óleo e chifres s/ madeira, 213 x 244 cm, 1980. The Pace Gallery, Nova York
Do mesmo modo, o artista contemporâneo David Salle também serve-se deste ‘manancial iconográfico’ para produzir pinturas que apresentam um emaranhado de temas, segmentos de imagens diferentes, com diferentes tratamentos pictóricos. Nas pinturas de Salle vemos imagens desconexas compondo uma tela, imagens justapostas e sobrepostas, extraídas da mídia, da pornografia, dos interiores em “estilo moderno”, da história da arte e do kitsch (HEARTNEY, 2002, p.32). A obra Mr. Luck, de 1998 [Fig.4], é um exemplo disso.
Fig.4 David Salle, Mr. Luck, óleo e acrílico sobre tela,
244 x 335cm, 1998. London Contemporary Art Gallery.
Já no Brasil o “citacionismo”, caracterizado, conforme Tadeu Chiarelli, por produzir obras cujo valor não está na novidade absoluta das formas, inicia-se mais claramente através da chamada “Geração 80”. A geração de artistas que surge no Brasil nesta década encontra na pintura de grandes dimensões um de seus principais meios de expressão, usufruindo de um amplo repertório de imagens e procedimentos lingüísticos preexistentes em suas obras. Grande parte dos artistas, “além de recuperar sobretudo a pintura e a escultura, empreende uma viagem pelo universo de imagens produzido pela humanidade através da história, disponíveis a todos os meios de comunicação de massa” (CHIARELLI, 1999, p.100).
É neste contexto de diálogo com a arte do passado, seja ela brasileira ou não, que me identifico com artistas dessa geração. Pois utilizo-me de apropriações, citações de imagens já existentes justapondo elementos do meu cotidiano com elementos da história da arte.
Fig.5 Eu Observando Minha Pintura, óleo s/ tela
100 x 150 cm, 2005
Fig.6 Amor, Sacro e Amor Profano (detalhe)
óleo s/ tela 118 x 118zx 279 cm, 1515-16
Galleria Borghese, Roma
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Importante também nessas obras é a presença da palavra. Todas as imagens desta série possuem um texto incluído no espaço da casa representado, que, assim como as figuras dos nus, são preexistentes.
Segundo Ricardo Basbaum, é Duchamp quem atribuí importância ao papel de um campo enunciativo em funcionamento simultâneo com a obra. Ao falar da migração das palavras para dentro da obra, passando a integrar a imagem como uma espécie de enunciado cúmplice, Basbaum afirma que:
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[...] o artista contemporâneo encontra condições de compactar esse intervalo de tempo, fazendo com que signo plástico e enunciado verbal aproximem-se de um mesmo instante, partes simultâneas e diferenciadas do mesmo processo: o enunciado criativo e seu espaço próprio deslocam-se para o interior da obra, na qualidade de elementos de sua estrutura (BASBAUM, 1995, p.382).
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Na pintura “Eu digitando” [fig. 7], a figura citada é apropriação de um nu feminino que originalmente compõe a obra As Banhistas de Renoir (1841- 1919). Em minha pintura esta figura feminina aparece digitando no computador a poesia “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar. O que aparece na tela do computador é um fragmento da poesia “Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente/ Uma parte de mim é só vertigem: outra parte é linguagem”. Apenas o espectador que conhece esta poesia saberá que é uma citação, podendo até completá-la mentalmente. Minha mãe, quando leu o que estava escrito no quadro, comentou: “Eu adoro esta música!”. E eu resmunguei dizendo que não era música, que era uma poesia. Ela imediatamente começou a cantar a poesia para mim. Só então fiquei sabendo que esta poesia, agora presente em meu quadro, é também uma música interpretada por Chico Buarque e Fagner.
A palavra na obra
Fig.7 Eu digitando, óleo s/ tela, 80 x 100cm, 2005.
Assim, dei-me conta de que os elementos citados são carregados de significados por serem referências da história da arte e da cultura. O diálogo proporcionado pela união destes elementos em minha obra vai depender muito do conhecimento do observador, de modo que a apreensão se faz por associações de elementos reconhecíveis. A leitura é feita de acordo com o que cada um conhece, com as referencias de cada um, exigindo uma movimentação mental, de memória e registros cognitivos e adjetivos
Registro de Memórias: Relações entre o espaço e a figura
Utilizei também, como referencial para a execução das obras, a fotografia. Porém as imagens reproduzidas em minhas pinturas foram sofrendo alterações conforme estas me pareciam necessárias. O espaço, por exemplo foi representado em preto e branco. Obviamente eu sei que a realidade não é em preto e branco. Faço esta alteração na cor com a intenção remeter a idéia de flash back, de lembrança, a mesma maneira como geralmente é representada no cinema e na televisão. O “real” a que me refiro nestas obras seria o espaço da minha casa. Mas quando pinto não é o próprio espaço que observo (a sala, por exemplo), e sim a imagem congelada deste espaço, ou seja, a fotografia.
Pintando interiores da minha casa, pinto coisas que existem, pois as vejo diariamente, mas na tela o que existe é apenas a representação. Como defendia Magritte em suas obras, não existe real na pintura, existe a pintura na pintura. Um cachimbo não é um cachimbo se não posso usá-lo como cachimbo. É uma idéia, um conceito de cachimbo. A mesma relação se dá também na imagem fotográfica. A fotografia pode apresentar um cachimbo, mas o fará como imagem, e nunca como o próprio objeto: real, físico, palpável.
Portanto, para representar o espaço habitado, escolho “cantos” da casa. Primeiramente fotografo estes espaços, estes cantos, que mais tarde serão meus guias na pintura. Gaston Bachelard, no livro “A Poética do Espaço”, fala da casa como o nosso canto no mundo, lugar íntimo e seguro, que guarda nosso passado e nos permite sonhar em paz, “todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de encolher-nos, de recolher-nos em nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, um germe de um quarto, o germe de uma casa” (BACHELARD, 2005, p.145). Bachelard fala das formas e símbolos que aproveitamos junto com nossa imaginação e com nosso devaneio, a serviço de uma fantasia íntima. Tento registrar estes momentos de solidão e devaneio em minhas telas. Momentos em que minha própria identidade é confusa, pois meu imaginário está repleto de personagens criadas por outros e, por momentos, essas personagens se apropriam do meu ser transformando o real em fantasia ou vice e versa.
Lucia Santaella e Winfried Nöth explicam que o imaginário conforme Lacan é o registro que mais proximamente se localiza dos problemas da imagem, pois é basicamente o registro psíquico correspondente ao ego (ao eu) do sujeito. Conforme os autores, “o eu se projeta nas imagens em que se espelha: imaginário da natureza, imaginário do corpo, da mente, e das relações sociais” (SANTAELLA, 1999, p.187-190).
A auto-referenciação que permeia estes trabalhos é fortalecida pelo título dado a cada uma das pinturas. Sou sempre “EU” fazendo alguma coisa. A minha casa, dentro de uma pintura, poderia ser qualquer casa, mas quando aparecem pinturas minhas, é algo que diferencia a minha casa de outras casas. Ressurgem nestas pinturas, pinturas anteriores. Porque ali elas estavam no momento em que fotografei aquele espaço, mas também porque assim eu queria que fosse. Os elementos presentes nas imagens de minhas pinturas não estão ali por acaso. Apropriar-me é eleger algo: uma figura, uma frase, um espaço. Icléia Cattani, ao falar da obra do artista Alfredo Nicolaiewsky, usa as seguintes palavras que transcrevo aqui por servir também ao meu trabalho: “Por trás desse princípio de apropriação, estão presentes o artista, sua história pessoal, a história maior, na qual ele se encontra inserido, e sua circunstância” (CATTANI, 1999, p.92).
Ao projetar a imagem de um nu feminino em minha tela, para a realização da primeira obra da série, não percebi que a imagem estava invertida. Dei-me conta disso apenas após traçar o esboço na tela. Foi então que acabei por adotar o uso das imagens espelhadas em meu trabalho. Assim, os nus femininos presentes em minhas obras aparecem de forma espelhada com relação a sua imagem original [ver fig.6 e fig.7]. Acredito que isso se explica pelo fato de que a minha própria imagem só tenho acesso de forma ilusionista, e, na maioria das vezes, espelhada. Quando olho um espelho de frente, acredito estar me vendo, mesmo tendo consciência de que a mim apenas é possível ver a minha imagem. Poso em frente ao espelho, analisando minha própria imagem, quiçá até querendo parecer-me com os modelos que carrego em meu imaginário. Kátia Canton comenta que:
...dentro do universo de imagens humanas, o auto-retrato se estabelece como um sub-gênero repleto de peculiaridades. Nele, o artista se retrata e se expressa, numa tentativa de leitura e transmissão de suas características físicas e de sua interioridade emocional. [..] O auto-retrato é o espelho do artista. Ali se reflete a própria imagem assim como a imagem da arte e de um determinado contexto em que a obra se inscreve (CANTON, 2001, p.68]
Em meu trabalho, as figuras femininas aparecem desempenhando atividades cotidianas minhas, em um espaço intimo meu, a minha casa. Ao elaborar esta proposta, parti do princípio de que eu me projeto nas coisas com as quais me relaciono, seja a personagem de um filme, uma música, uma imagem estática ou uma série de outras coisas que a mim são apresentadas. Sendo esta figura uma projeção minha, é como eu me vejo: invertida.
Refletindo questões parecidas, a artista norte-americana Cindy Sherman produz obras fotográficas onde ela mesma aparece incorporando personagens clichês de estereótipos femininos. A artista literalmente veste as fantasias criadas pela mídia, revelando, segundo Klaus Honnef “o poder das imagens tecnológicas sobre a consciência e o comportamento humanos; as suas obras constituem um reflexo exemplar do omnipresente mundo dos media comerciais” (HONNEF, 1994, p.83). O mesmo autor diz sobre a obra de Sherman que
​Contudo, as suas obras não traduzem auto-admiração ou vaidade. A atriz interpreta sempre novos papéis, papéis esses que são arquétipos femininos veiculados por filmes e revistas ilustradas e determinados pela sociedade, que impõe determinados modelos de comportamento principalmente à mulher e que, na sua maioria, se tornaram rígidos chavões (Idem).
Sherman faz uso da própria imagem, porém vestindo a fantasia de modelos conhecidos do público. Simula uma pintura clássica ou a cena de um filme, posando no papel da figura principal da imagem reproduzida. Em meu trabalho ocorre o contrário. As figuras citadas é que aparecem como se estivessem simulando cenas do meu dia-a-dia. Oculto a minha imagem substituindo-a por outra.
Mas nesse mostrar-se e esconder-se, de maneira artificial, caracterizada pela manipulação evidente das imagens, são expostas preocupações e desejos muito íntimos. Conforme salienta Canton, a memória corporal torna-se, na arte contemporânea, um bem incomensurável de riquezas afetivas, que o artista desnuda e oferece ao espectador com a cumplicidade e a intimidade de quem abre um diário.
Conforme Arthur Danto, a “pureza” da pintura seguindo as definições do crítico Clement Greenberg, consistia em espalhar pigmentos sobre superfícies planas, mantendo a pintura como tema da pintura. Porém, foram os artistas pop, a geração de artistas que se seguiu ao expressionismo abstrato, que buscaram trazer de volta a arte para o contato com a realidade (DANTO, 2006, p.112-114). Segundo Cattani, a produção artística contemporânea “aceita as contaminações provocadas pelas coexistências de elementos diferentes e opostos entre si”, opondo-se à pureza, vinculada a certos movimentos modernos propugnados, sobretudo por Greenberg (CATTANI, 2007, p.22). Observando a produção de alguns artistas contemporâneos podemos perceber que as possibilidades de representação artística partin
do de técnicas convencionais, como a pintura e o desenho, mesclando, combinando e contrastando elementos de origens diversas, são infinitas.
As pinturas da série Fantasias do Cotidiano são compostas por três elementos distintos: o espaço da casa, o nu feminino e a frase. Acredito que as imagens desta série são tensas pela ambigüidade da proposição que sugere fusão e contraste, que afirma e nega alguma coisa, pois ao mesmo tempo em que busquei compor com todos os elementos uma única cena, os diferenciei pela mudança de cor, denunciando que são coisas diferentes. Em meu trabalho artístico atual dou continuidade a esta série, realizada em 2005. Minhas pinturas recentes propõem outras possibilidades de combinações. Assim, minha prática artística vem se constituindo “impura”, por ser resultado da mescla de diferentes procedimentos, técnicas e materiais.
Possibilidades da mistura
Referências:
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BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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BASBAUM, Ricardo. Migração das palavras para a imagem. Gávea, Revista de História da Arte e Arquitetura, Rio de Janeiro: nº 13, setembro, 1995.
CANTON, Kátia. Novíssima Arte Brasileira. São Paulo: Iluminuras, 2001.
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CATTANI, Icleia Borsa. (org.) Mestiçagens na Arte Contemporânea. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
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__________________. Imagens Mestiças. In: Alfredo Nicolaiewsky. Porto Alegre: FUNPROARTE, 1999, p.91-101.
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CIRLOT, Lourdes. Últimas Tendências. 2ª ed, Col. História Universal Del Art. Barcelona: Planeta, 1990.
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CHIARELLI, Tadeu. Arte Internacional Brasileira. São Paulo: Lemos Editorial, 1999.
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DANTO, Arthur. Arte após o fim da Arte. Trad. São Paulo: Edusp, 2006.
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HEARTNEY, Eleanor. Pós-Modernismo. Trad. Ana Luiza Dantas Borges. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
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HONNEF, Klaus. Arte Contemporânea. Colônia: Taschen, 1994.
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HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
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MCCARTHY, David. Arte Pop. São Paulo: Cosac Naify,2002.
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SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried. Imagem: Cognição, Semiótica, Mídia. São Paulo: Iluminuras.1999.
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WOOD, Paul...[et alii]. Modernismo em Disputa. São Paulo: Cosac & Naify,1998.
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